sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Morangos Mofados, por Caio Fernando Abreu


Contos, Crônicas e peças teatrais
Caio Abreu: leitura obrigatória
O autor de Morangos Mofados foi um rebelde dentro e fora do âmbito literário. Investigue suas motivações:
Caio Fernando Abreu faz parte de uma geração de escritores que despontou na década de 1980, propondo temas inéditos e novas linguagens. Considerado um dos principais contistas nacionais, fugiu dos clichês, buscando uma temática própria e uma linguagem fora dos padrões ditos normais. Em 1968, durante a ditadura militar, foi perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops).


O texto a seguir, em destaque, foi extraído de uma carta de Caio Fernando Abreu. Nela, o contista dá conselhos a um amigo.

Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente. (...)
E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. (...)
Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos Mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry Fields Forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma – real – é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio – porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas. (...) Quando terminei Morangos Mofados, escrevi embaixo, sem querer, "criação é coisa sagrada". (...) É misterioso, sagrado, maravilhoso.

PARA SABER MAIS:


Adaptado do site caio.itgo.com

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