segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Desforrado


Bem feito! Quem mandou me ler? Agora
vai ter que me engolir com casca e tudo!
E mesmo quando, em parte, me desnudo,
quem prova sente nojo e cospe fora.

"Bem feito!" (é o que se diz ao cego) "Chora!"
Eu choro, mas em vez dum pranto mudo
converto o desabafo em verso agudo,
tão grave quanto um frade que não cora.

Sem papas, meus buracos escancaro
e os olhos dos leitores esbugalho
ao verem que a derrota vendo caro.

E a quem acha bulhufas o que valho
das tralhas mais baratas sou avaro
de modo a indecifrar-lhe meu trabalho.

Glauco Mattoso


Nesse poema, o ponto-central da análise é a transgressão poética. Basta notar que o soneto surge como uma espécie de vingança, uma vez que “Desforrado” significa vingado, recompensado. É, portanto, numa atitude metalingüística que Glauco Mattoso trata aqui a questão do fazer poético, onde por meio da própria poesia, ele explica o modo e o motivo pelo qual escreve o soneto. Verificamos inicialmente que o sujeito narrativo, marcado em primeira pessoa, deixa claro não estar disposto a querer entrar em conjunção com os valores tomados pelo sujeito enunciatário – realizado no discurso pela figura de um leitor avesso aos temas não-convencionais. Há, portanto, um conflito de valores. O eu-poético toma o leitor como responsável, por colocar o seu fazer poético à margem da literatura dita canônica. Isso, pelo fato de julgar transgressiva figura do poeta, razão pela qual ele o “cospe” fora. Em contrapartida, no plano de conteúdo, observa-se uma marginalidade que quer se impor. Existe, portanto, uma relação de transgressão (plano de conteúdo) e integração (plano da expressão) que permeia toda a poesia. Nesse aspecto, verificamos uma relação intertextual, na medida em que o soneto sempre foi empregado pela tradição literária para abordar temas elevados e nobres, justificando, assim, o eu-poético neste caso, a lançar mão de uma forma clássica, para tentar adentrar no âmbito do cânone. Porém, tratando de temas considerados marginais e cotidianos